QUEIMA DAS FITAS, PRAXES & OUTRAS GERINGONÇAS MENTAIS



A propósito da Gato Vadio desancar por estes dias na praxe académica, gaúdio da mocidade lusitana, o Júlio Henriques enviou-nos o texto que abaixo postamos. Não é da praxe, mas é de leitura obrigatória...

QUEIMA DAS FITAS, PRAXES & OUTRAS GERINGONÇAS MENTAIS

Da miséria no meio estudantil (continuação sem fim à vista)

«Quem nos deu asas para andar de rastos?»
continua Florbela Espanca a perguntar no seu programático poema
«Não ser»

Em chegando o mês de Outubro, repetem-se por todo o país, no perímetro das escolas universitárias, em seu redor e em vários pontos da paisagem urbana, cenas cuja visualização constitui material espontâneo para se apreenderem ao vivo aspectos da cultura portuguesa radicalmente criticada por Antero de Quental no seu estratégico manifesto de 1871, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares.

Em Portugal, o movimento estudantil, no contexto da luta contra a guerra colonial em África, aboliu em Coimbra, na crise académica de 1969, a Queima das Fitas e respectivos anexos, afirmando que os tempos já não estavam para palhaçadas. Mas em 1980, derrotada a revolução social subsequente ao 25 de Abril de 1974 e vindo de novo ao de cima a velha sociedade, os tempos para palhaçadas regressaram, como se impunha, e as praxes académicas mai-la Queima das Fitas foram reimplantadas − alastrando desta vez a todo o país o legado provinciano de Coimbra e a célebre palermice que Almada-Negreiros ali detectou.

Impantes, os alunos de todas as universidades e institutos fizeram questão de cozinhar uma «tradição académica» local, com as respectivas variações de pormenor nos trajos pretos herdados do clericalismo de má sina, a capa e batina do ensino sô prior.

Semelhante iniciativa foi expressão, por um lado, da massificação do ensino terciário (após o primário e o secundário) exigida por um capitalismo que tinha absolutamente de modernizar-se para se expandir, e, por outro lado, do atrasado e manco desejo estudantil de aceder à imagem e eventuais privilégios da dótorice à portuguesa, inscrita na hierarquização papuda que pretende criar diferenças de estatuto (nesta bazófia tipicamente portuga) entre estudantes e não estudantes. Com efeito, sendo Portugal encarado como uma eterna nação de analfabrutos, tinha dialecticamente de continuar a ser um país de dótores − ou seja, de prolongar no presente o passado dessa apetecida parolice.

As «praxes» tornaram-se assim, nas diversas «academias», objecto duma vasta e desenvolvida infantilização de jovens adultos, revelando, do mesmo passo, o notável grau de submissão a que podem ser levados indivíduos aparentemente em posse das suas faculdades mentais e na «flor da idade», desde que a cenoura da ostentação com que lhes acenem se apresente lustrosa. As desbundas «académicas», engenhosamente rascas, podiam deste jeito obrigá-los a provar toda a espécie de trampas, a fazer simulações de cenas sexuais à boa moda dum machismo eternizado, a desempenhar papéis de heróicos néscios, a obedecer, em suma, às ordens proferidas no altar duns pobres rituais destinados a indigentes, para gáudio da inteligência ruminante de «veteranos» e «veteranas» devidamente arreados e intumescidos, apoiados nas respectivas coortes de serviçais.

A documentação psicológica assim obtida terá sem dúvida sido útil a um patronato que estava justamente, também ele, a querer modernizar-se, com vista à obtenção de uma mão-de-obra dócil, mal paga e adaptável às curvas sinuosas do «crescimento económico». De facto, se tantos jovens modernizados eram capazes de baixar a espinha a torturas, embora neoparvas, impostas por colegas mais velhos, isso era um sinal, bastante positivo, de que seriam moldáveis a um outro tipo de cangas, mais elaboradas e já decorrentes da ciência económica, estabelecidas como coisas banais e imperativas: estágios laborais sem receber um chavo e de sorriso nas ventas, baixos salários, recibos verdes, precariedade, flexibilidade, adaptabilidade, e o mais que à dita ciência convenha em prol da sacrossanta «produtividade».

No tocante a estas sôpriores geringonças mentais, um outro aspecto a exaltar é o folclórico. Com efeito, ao reinstalarem nos costumes escolares as grãs tradições da Queima e da Praxe, estes estudantes tornaram-se, ipso facto, os últimos lídimos representantes do mais autêntico folclore português: o dótoral. Sem eles, ter-se-ia perdido para sempre um património inestimável, arrotante, aparelhadamente rançoso, devidamente grotesco e bafiento − em suma: sô prior.

De resto, as localidades onde tão elevatórios fenómenos acontecem, para satisfação das forças vivas que ali medram, tornam-se, por altura da Semana da Queima (já com marca registada e empresa privatizada), verdadeiros arraiais de gesticulações, com multidões vestidas de preto, eles de calça ou calção, elas de saia ou saiote, envergando óculos escuros que em todos acentuam o ar modmoderno e sô prior, ingurgitando a toque de caixa hectolitros de cerveja a martelo, entoando gritos de vitória em honra e louvor das Santíssimas Novas Tecnologias (avé, avé, ó miraculosas!), vomitando e mijando nas mais diversas superfícies disponíveis, e até, benza-os Deus, indo à missa (solene, para a «benzedura das pastas»), e ósdespois a outras missas, campais e frenéticas, crentes extasiados ante as sonoras vedetas que ali vêm de encomenda − as quais, com a sua estridência electrónica, têm a sublime tarefa de entoar hinos promissores ao futuro futuro da nova geração.
Júlio Henriques