Eu fui a Lisboa abraçar-te

Eu fui a Lisboa abraçar-te

A ordem perturba mais do que a desordem.

Quem quiser ver, a democracia está aí: converteu a política, toda a política, no confronto com a polícia.

A política é hoje tudo aquilo que escapa ao sistema político-partidário. E contra o que escapa ao sistema político-partidário, a mentira da democracia chama a polícia.

Desta vez, não foram apenas os sitiados pelo controlo social e político – exercido pelo Estado em nome da falsa democracia – que sentiram na pele a repressão exercida pelo aparato da polícia-exército: alguns jornalistas, curiosos, transeuntes, imigrantes, ficaram espantados. Um carioca, ao entrar no Rossio às 18h da tarde ficou mudo e gelado: pensou que tinha regressado ao Morro Formiga na favela da Tijuca.

Mas a falsa democracia é por demais previsível: o ataque preventivo começou cedo. Ataque preventivo na rua, em Lisboa, ataque preventivo nos/dos Media com a série policial black block, ataque preventivo nas fronteiras. Assim desvia a falsidade da sua essência, assim limpa a ferocidade do seu Estado-Guerra: cercar o mal, isolar o desordeiro, o violento, o vândalo, os palhaços, os filhos-da-puta.

Mas se o Estado é cada vez mais guerra e cada vez mais previsível, o que dizer do PCP?

O meu avô e o meu pai foram/são comunistas. O meu avô foi preso, torturado, na prisão tentou suicidar-se para não ceder à tortura, para não ceder à violência: quis ceder a vida para não ceder a liberdade. Teve 7 dias em coma, tantos quanto os dias que ficou sob tortura do sono – a mesma tortura, entre tantas outras, que a NATO infligiu e inflige aos prisioneiros de guerra do Afeganistão e Iraque com o beneplácito do Estado português. Ao fim de 7 dias de tortura do sono, num rebate de lucidez, atirou-se a pique e de cabeça do vão das escadas do 4ª andar da prisão de Coimbra.

O meu pai, deu metade da vida pelo “partido”. Acumulou cólera e raiva, cortes nos direitos sociais e degradação da democracia. (A única coisa que ganhou foi, isso sim, o movimento de base e habitacional cooperativo que ajudou a fundar com sucesso). Acumulou mais cólera e raiva do que aquela que eu tenho.

O PCP é uma linha de comando de controlo da raiva e da cólera?

Nenhuma outra estrutura/movimento político e social no país é um “black block” em potência além do PCP.

Se a voz de comando disse-se: ocupem as fábricas, ponham cadeados nos portões, não deixem sair os camiões, o país parava. O PCP não tem de o fazer, só a ele lhe cabe essa responsabilidade, ou melhor, ao seu comité. Mas para achar a nossa responsabilidade em tudo o que fazemos, temos sempre que confrontar aquilo que realmente fazemos com as possibilidades do que poderíamos fazer e não fazemos. Nessa diferença, podemos achar a nossa irresponsabilidade.

Pergunto – não à voz de comando, aquele que declara à Lusa (Fonte: TVI) que as pessoas que foram impedidas de entrar no protesto «não pediram antecipadamente para fazer parte do corpo principal da manifestação»; ou ainda, citando a reportagem assinada no JN por Catarina Cruz, Carlos Varela e Gina Pereira, “o único caso de maior preocupação deu-se, a meio da tarde, quando um grupo não organizado foi cercado pelo Corpo de Intervenção da PSP, junto ao Marquês de Pombal. A intervenção policial deu-se a pedido dos organizadores da manifestação que perceberam que mais de 100 pessoas iam integrar o protesto. A polícia, fortemente armada, cercou o grupo na cauda do cortejo” –, pergunto a tantos comunistas e simpatizantes do PCP (e já agora aos outros movimentos partidários que a integravam) se têm o direito de impedir que um outro grupo de cidadãos exerça o mesmo direito que eles próprios gozaram no mesmo sítio, à mesma hora?

O que o PCP fez (ou a organização submetida à lógica centralista e autoritária do PCP) foi ilegal, ilegítimo e, sobretudo, um ultraje. E para fazer cumprir uma ilegalidade, chamou a polícia. E ditou-lhes: façam desta forma, cerquem esse grupo de cidadãos, ou seja, exerceu com eficácia o seu poder sobre as autoridades condicionando-as a agir fora da lei. Conseguiu o apartheid. Foi a peça que faltava no puzzle montado pelo circo do poder para legitimar mediaticamente a NATO, a sua cimeira, a sua máquina de guerra.

Foram três as entidades que montaram o circo mediático de legitimação da Cimeira da Nato: as altas-esferas políticas; a Polícia e os seus vários serviços; e os Media de Informação de Massa.

E o circo mediático tinha uma pedra-chave em todo processo de desvio da essência assassina da NATO e limpeza do sangue do seu cadastro criminal: os black block.

15 dias antes, começou-se a armar a tenda: telejornais transformados em séries policiais.

Os black block seriam a pedra-chave para montar o cerco, para apontar o adversário, para legitimar a repressão. Bastaria um carro a arder ou uma montra partida e, passe de mágica, o espectador lá de casa pensaria: de facto, os gajos da NATO até têm razão, estes tipos anti-Nato são uns arruaceiros. E todos os manifestantes passariam a ser arruaceiros e os senhores da Guerra uma espécie de caritas global d’ ajuda ao outro!

Mas desta vez, a tripla entente (Estado-Guerra, polícia e Media) não precisou de polícia infiltrada a partir as montras, para isolar o adversário, para desviar a atenção dos 35 mil mortos civis afegãos, os torturados, o horror, o ódio, o terror espalhado pela NATO. Tinham a voz de comando do PCP: a farsa dos B.B (barbies big-brother), a psicose colectiva instigada na TV por Estado-Guerra, Polícia e Media, passava a ter a sua realidade na manifestação contra a cimeira da Nato.

Nessa lógica, o PCP integrou a lógica do Estado: primeiro, limitou a sua actividade de protesto à legitimidade imposta pelo Estado da falsa democracia, como sempre tem feito (uma greve geral em 22 anos é uma espécie de suicídio assistido pelo capitalismo…), depois impedem um grupo de pessoas de juntar-se a uma só voz contra a Guerra, contra a NATO.




Cerquem esse grupo, cacem-nos, porque a democracia está em perigo!

E cercados que estávamos, passámos a ser o adversário, o arruaceiro, o vândalo, o criminoso que vem na TV. Nem uma pedra atirámos. O que o PCP e a polícia-exército fizeram foi fazer-me sentir, num par de horas, um palestino.

Num par de horas, a violência do cerco policial, converteu-nos em palestinos e palestinas (sem querer dramatizar, é apenas uma imagem, pois sei bem a diferença que vai entro um cerco num par de horas e um cerco total durante 3 gerações…). Nem sequer uma pedra atirámos. (Nem sequer aquelas garrafas d’água que se esborracharam no Vital Moreira… talvez tivessem sido anarcas com credencial!!!!!!!!!).

Entre pacifistas, libertários, membros da PAGAN, anarquistas e outros tantos seres como eu sem serem “istas” de nada, ali estiveram demonstrando a sua não-violência num momento inusitado de demonstração da violência do Estado e de clara violação de dois direitos fundamentais, o direito à manifestação em qualquer espaço público sem prévia autorização e o direito à livre circulação no espaço público do território nacional (não nos esqueçamos que ao longo do percurso foi-nos sucessivamente negado o acesso livre ao território que a voz de comando determinou que não podíamos pisar). À nossa volta, acabava a falsa democracia… mas quando a (falsa) democracia chega tão longe…

Sitiados, com polícias que nos ladeavam enfileirados a um metro ou dois de distância uns dos outros, já não tínhamos mais nada senão o corpo. Caçados os direitos, era a sobrevivência do corpo. A liberdade de ser corpo. Nada mais. Não atirámos uma pedra.

Por isso, no fim, quando te abracei, sei que abracei outro corpo, tão vivo quanto o meu, só violência de lágrimas. Mais nada.

Temos de voltar a fazer amor com a liberdade ou a democracia deixará de existir.

Pelo estado de ruína da cidadania, pela crescente militarização da polícia, pelo estado de ódio e controlo social, os nossos filhos (aqueles que continuem a afirmar a liberdade com a vida) caminharão já não escoltados de cada lado por um polícia, mas por tanques de guerra. Então, seremos cada vez mais palestinos e palestinas, cada vez mais cercados, e o nosso corpo, para viver, vai ter de explodir.

Júlio do Carmo Gomes

Mais duas breves notas:

Ainda os finlandeses impedidos de entrar na fronteira portuguesa. Num dia da vida deles, cada um desses homens, disse: o meu corpo não será uma arma. Nenhum Estado me obrigará a pegar numa arma. O meu corpo não tirará a vida a outro corpo. Objectores de consciência, pacifistas entranhados, vinham juntar-se aos activistas que em Lisboa condenaram outro tipo de homens: aqueles que, num dia da vida deles, não tendo coragem para matar com o seu próprio corpo, mandaram outro corpo puxar o gatilho. O que espanta não é a arbitrariedade da polícia, o abuso da autoridade, a sua insuficiência. Mas a normalização da violação de um direito fundamental. Já alguém apresentou uma queixa contra o Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem?

Na acção de desobediência civil não-violenta levada a cabo na manhã de sábado o ambiente de protesto e mesmo a actuação policial acabou por correr sem ânimos exaltados, com relevo para a calma dos activistas e para a descoordenação da polícia (por exemplo, não conseguiram evitar um acidente de duas viaturas, sem qualquer gravidade, não tinham carrinhas suficientes para os detidos, e, numa cidade sitiada por polícias, só passado 25 minutos passaram a ser em número igual aos dos activistas…). Em todo o tempo em que estive lá a observar, como testemunha e prestando o meu apoio aos activistas, só vi uma pessoa exaltada: Paulo Moura, jornalista do Público. Indignado comigo pelo facto de eu não ter conseguido, pelo desenrolar das circunstâncias, cumprir com o que com ele tinha combinado: ler o comunicado dos activistas uma única vez diante de todos os jornalistas presentes. Não foi possível. Não estava lá como profissional de conferências de imprensa… Exaltado, para espanto também das outras duas pessoas que assistiam aos seus amuos devido à sua árdua tarefa de jornalista violentado nos seus direitos humanos pelo conferencista de serviço, o espanto atingiu o clímax com o comentário do ofendido: “Vocês são iguais aos gajos lá de baixo da Cimeira”. Mesmo ficando na dúvida se apenas se referia aos adidos de imprensa dos senhores da guerra, respondi-lhe: “Nenhum de nós tem as mãos manchadas de sangue”. O profissional acalmou-se, respirou fundo, recompôs-se da figura: “Só tenho uma pergunta: quantos foram detidos?”. Ora, para isso, tem a polícia.