Considerações à volta do debate sobre Joseph Beuys ou de como o romantismo tem a face oculta

A conversa de sexta-feira passada no Gato Vadio a propósito da vida e da obra de Joseph Beuys decorreu com vários pontos de interesse e, desde logo, é positivo poder juntar mais de 20 pessoas que desejam dialogar sobre questões que ocupam as nossas narrativas pessoais.

Estas reflexões são um simples contributo contra a cultura do “silêncio”.

Se o debate prosseguir será um bom sinal.

Além da pouca relevância aqui e ali de algumas afirmações, o que é próprio também das conversas informais, (ou mesmo da arrogância de alguém chamar arrogante a quem admite não conhecer!?...), a questão da personalidade, da persona, da biografia, nomeadamente o facto de Beuys ter sido soldado durante a II Guerra, ocuparam grande parte da discussão. Independentemente dos juízos feitos, a necessidade de fazer um questionamento moral do outro (neste caso, de Beuys) prevaleceu sobre a necessidade (ausente?) de questionar a nossa própria vida, as nossas morais internas, os nossos lugares-comuns, as nossas narrativas pessoais. A vitalidade das acções e das ideias de Beuys, as várias experiências colectivas que ajudou a criar (Universidade Livre Internacional, projectos de reflorestação urbana, referendos populares, movimentos activistas contra os planos nucleares, defesa da democracia directa e de grupos feministas, além da sua actividade enquanto artista plástico e do seu conceito ampliado de arte), deveriam chegar para instigar uma problematização crítica sobre a nossa existência na sociedade actual. Pode e deve-se falar sobre a biografia de um indivíduo, mas o desejo de o levar à cruz, de o absolver ou santificar, revela o quão pouco aprendemos da natureza humana e o muito que aprendemos com a missa papal. Aceitar ou rejeitar Joseph Beuys por nos servir como um ídolo ou como anti-ídolo para nos comprazermos é perder de vista o essencial: a nossa realidade. Pôr em causa as nossas ideias, as práticas que temos, as aproximações à realidade que fazemos, é sempre mais difícil (e seria incomensuravelmente bem mais construtivo) do que lançar uma pedra.

O outro mote dominante do debate foi bem mais interessante e elucidativo: várias vozes consideraram que Beuys era um “romântico”.

É difícil demonstrar o que é da ordem da evidência: Universidade Livre Internacional, projectos de reflorestação urbana, referendos populares, movimentos activistas contra os planos nucleares, defesa da democracia directa e de grupos feministas, fundação de cooperativas e dos Verdes (que abandonou em 1982, bem antes da social-democratização do movimento ecologista).

Um indivíduo que em conjunto, organizando-se em colectivos autónomos, fez mais do que nós faremos juntos (“nós” que estivemos reunidos nessa noite) ao longo das nossas vidas (podem derrear no meu prognóstico…) dá-nos uma imagem clara de onde vem o epíteto de “romântico” e os valores que associamos ao romantismo.

O anti-romantismo é tão-somente o contra-ponto de uma cultura romântica trucidada pelo império do neo-liberalismo. Cultura dominante que gere a seu bel-prazer a geração (romântica) anti-romântica.

Classificar Beuys de um ser romântico revela mais o desencanto, o desespero, a nóia da falta de valores e da ausência de sentido, a angústia do vazio histórico e social, com que o estado dominante das coisas se refastela e progride. O rótulo de romântico quer dizer derrotado pelo seu tempo e parte de uma leitura irmanada com a bitola do tecno-capitalismo: a sua eficácia falhou, as suas ideias fracassaram… por comparação com as conquistas e os objectivos cumpridos pelo capitalismo avançado. É vê-lo numa competição.

O desencanto, a indiferença, o relativismo da moda, a pseudo-questão das identidades, a vidinha e o resto são favas, são o produto mais profundo gerado pelos valores do liberalismo existencial – argamassa teórica onde o mercantilismo puro e duro se legitima e faz lei. Não admira, por isso, que alguém que se supõe anti-romântico (ou não romântico), alguém que esteja com o seu tempo (fartando-se, todavia, de salvaguardar o seu ponto de vista crítico), fique à espera, cruze os braços, ou pior, creia que ficar à espera e cruzar os braços é uma forma inócua, isenta, inconsequente, quando a evidência das tais conquistas nos invade a todos, fazendo da nossa própria vida um campo de batalha. Só alguém romântico em demasia poderá supor que a complexidade e o aprofundamento da sociedade ultra-liberal em que vivemos não fazem de nós um desmesurado campo de batalha pela sobrevivência daquilo que cada um tem como humano. É legítimo abdicar da luta, da resistência (quem desejar o desencanto, poderá até escrever excelentes poemas; quem preferir a angústia do “depois do capitalismo-individualismo” não há mais nada, com o passar do tempo fará da angústia uma guloseima, um altar, ou, magia, uma alegria como outra coisa qualquer e, sem sombra de dúvidas, encontrará também aí a sua humanidade) e só o tal ponto de vista sacerdotal que dispensamos dirá o oposto. Mas a distracção, esse suicídio do humano por distracção dá-nos cabo dos nervos. Por outras palavras, a alienação. Já não a alienação do poder, da coisa política, dos centros de decisão, da cultura, da informação, da telenovela, etc, mas a alienação da sua própria realidade. A alienação da vida humana.

Se acreditarmos que Beuys foi um romântico e que nós já somos uns meninos e umas meninas crescidinhos, que há muito perdemos as ilusões, que estas questões são na melhor hipótese puro academismo, isso dá-nos uma ideia clara de quem vive (sem se aperceber) numa representação ideal do mundo. Falamos do idealismo do liberalismo ideológico e existencial que, manhosamente, se faz passar por um anti-idealismo, ou melhor, por um não-idealismo.

Quando estamos no meio do deserto, não o conseguimos reconhecer. E o deserto do liberalismo existencial é extenso demais. Arguto e camaleónico como nenhum deserto-ideologia conseguiu ser até hoje. E quando não o reconhecemos, corremos o risco de ele nos reconhecer a nós. Ele ficará agradecido, ou melhor, fará o seu número mágico para que cada um de nós se sinta no dever de lhe agradecer a proeza de nos reconhecermos ainda como humanos na sua matriz, nos seus valores, nos seus traços distintivos, na sua clareza e lucidez histórica, na sua objectividade, no seu pragmatismo, no seu pacto de estabilidade, na acuidade das suas estatísticas e na proficiência das suas contas públicas, das suas justificações cínicas para a crise, para a iniquidade social, para a exclusão, para os cortes na educação e na saúde, para o policiamento da lei, e também para nos reconhecermos no seu esforço de integração, de criação de empregos, de estímulo à economia e aos grandes investimentos, na sua impotência para controlar os mercados financeiros, a banca privada, as empresas de rating e de crédito internacional, a sua tentativa pedagógica de reformar o FMI, de diminuir a pobreza e a sida em África, para tal aliando-se compreensivelmente a quem, com sentido de estado, se reconhece na sua matriz, nos seus valores, nos seus traços distintivos, na sua clareza e lucidez histórica, na sua objectividade, no seu pragmatismo, no seu pacto de estabilidade, na acuidade das suas estatísticas e na proficiência das suas contas públicas. Não tenham ilusões. De românticos é que o capitalismo avançado precisa.

Romântico não é apenas aquele que acredita que uma ideia pode mudar o mundo, mas também (principalmente, no mundo de hoje) aquele que julga que a falta de ideias não muda o mundo e a realidade. Muda-os inextricavelmente, e muda-os na direcção de aprofundar o deserto. Tudo é fluxo e movimento (e o capital sabe a lição de cor).

Tal como o excesso de produção das economias de ultra-consumo gerou uma abissal desvalorização do valor da mercadoria, o excesso de individualismo conduziu ao grotesco desaparecimento do indivíduo.

O próximo grande sucesso do capital será convencer os assalariados de que devem e têm que mudar o seu quadro mental face aos recursos naturais, destruindo as relações de força tradicionais e que produziram (desde a sedentarização do homem) uma ontologia do senhor face à natureza, ao mesmo tempo que permanece intocável a ontologia do senhor praticada pelos senhores que detêm as nossas vidas, a nossa existência. Duas décadas bastarão para sermos todos ecologistas, preservando o planeta e a humanidade, e para todos continuarmos escravos que perdem a sua humanidade.

Tal como um operário que estava em plena revolução marxista esperava pelo raiar do “dia”, do “amanhã”, como lhe explicavam os teóricos e os burocratas do Comité, e dessa forma davam o seu contributo para a inércia da máquina-idealista-marxista, também o capital exige aos seus cidadãos que esperem um pouco mais, pois “amanhã” voltarão a ser úteis à máquina que os delapida até ao nível infra-humano e vão enriquecer o seu individualismo a favor da revolução, a revolução objectiva, pragmática, a-histórica, tecnocientífica, sem território fixo, e inevitável do capital.

Há 20 anos usavam ainda o passe mágico da sociedade do bem-estar. Mas o cidadão prático, resoluto, crítico, consciente, de esquerda, progrediu no seu romantismo: já não precisa do bem-estar para ficar convencido da revolução do capital. Mais um passo no crescimento da lucidez histórica, mais uma prova de que estávamos certos quando perdemos as ilusões, que não devemos perder tempo com estas questões. A revolução do capital é inevitável, todavia continuamos atentos, somos conscientes, lemos o Público, compramos comércio-justo, temos consciência crítica, somos de esquerda e o Beuys era generoso, um romântico! A pós-modernidade é o meu orgasmo, o meu ponto G elevado à potência!

“Quem denúncia, isenta-se”. Isenta-se, não da sociedade, mas da sua própria realidade. Haverá alguém mais romântico do que aquele que se ausenta da sua vida?

O “medo de existir” deu um salto no escuro com a última aula do professor.

Manter um discurso crítico em relação ao capital e dizer ao mesmo tempo que é impossível superá-lo, revela a impotência de um romantismo oculto: a esperança encapotada de que para resolver o “capitalismo” é preciso uma solução final. Aquele que hoje crê que a revolução não somos nós, não depende de nós, não consegue enxergar que a questão é bem mais triste: não podermos afirmar, para o bem e para o mal, que a realidade somos nós. Quando já ninguém acredita na sua realidade para fazer frente ao estado das coisas, então, estaremos sempre mais perto de acreditar no messias, na solução global, no “é agora ou nunca”, no D. Sebastião (Obama ou Fernando Nobre, ou a solidariedade com a Madeira – essa neo-solidariedade catastrófilista, mediática, virtual, separada da existência, separada da vida de cada um, separada da carne, do sangue, das mãos, da pele, e que parece ser a única de que somos capazes).

A perspectiva anti-romântica bebe e embriaga-se ainda com a ressaca do utopismo e das perspectivas irrealistas de que uma mudança só é possível com a refutação absoluta da realidade actual. Existem tantos caminhos como modos de pensar. Mas o caminho é à partida falsificado quando se separam modo de pensar e realidade da existência. Quando a vida e o mundo de ideias se alienam quotidianamente uma da outra. A isso chamamos romantismo. E Nietzsche pode pouco contra milénios de cultura platonista recauchutada pela ocultícia socrática.

No fundo, quem mantém um conjunto de ideias críticas sobre a realidade actual do capitalismo avançado e, em simultâneo, se cansa mesmo antes dele abdicar, é filho e filha da geração moderna que acreditava que uma nova sociedade pressupunha uma tábua rasa histórica, uma destruição absoluta da realidade. Pensar que o capitalismo triunfou (ainda não vimos nada do que está para vir) e que essas utopias falharam, provocou um efeito de “desinsuflamento” que é uma boa desculpa, mas participa ainda da mesma crença ideal do romantismo que animou as utopias derrotadas: que o capitalismo não pode ser transformado ou destruído porque não existe(m) alternativa(s). O romantismo das utopias, principalmente da utopia marxista, que levou uma geração de homens e mulheres a combater por um mundo novo, foi trocado pelo seu reverso: o romantismo da anti-utopia. A diferença é que o romantismo das utopias socialistas era fruto de teorias e dinâmicas em si mesmas (claramente tidas e percepcionadas como tal) românticas, utópicas, historicistas, enquanto o romantismo da anti-utopia é fruto, mais do que da ressaca das grandes utopias e narrativas históricas, do próprio processo fugidio e imparável do capitalismo global e do sofisticado liberalismo existencial que o legitima e faz progredir.

Quem é romântico? Alguém que pratica todos os dias os valores e as ideias em que acredita, ou aquele que munido dos mesmos valores e ideias se entrega diariamente a uma vida pobre integrado nas práticas nada românticas do sistema de trabalho neo-liberal e das relações individualistas?

As massas (que entretanto já desapareceram em prol do indivíduo) nunca estiveram tão alienadas como hoje: na medida em que a alienação do conhecimento, do poder, da crítica, da cultura, dos recursos, diminuiu exponencialmente, aumentou incomensuravelmente a alienação do sujeito com a vida, com a realidade da sua existência. Daí que um analfabeto e pobre camponês do século XX fosse provavelmente humanamente menos miserável que um cidadão do século XXI. (Só os argumentos economicistas, estatísticos, os argumentos do neo-liberalismo poderão esforçar-se por contestar ou contra-argumentar).

A cultura de desperdício de que se fala, é antes de mais o desperdício que o ser humano faz da sua vida.

Essa ausência de vida que cada um carrega por aceitar todos os dias a sua quota-parte de integração no sistema capitalista.

Não basta acumular capital crítico como o capitalista acumula meios de produção. É preciso acumular a nossa realidade, a nossa existência.

De forma simples e resumida a pós-modernidade, que a todos nos envolve e onde uns se deixam ou se desejam acoitar, é a condição de que aceitamos a consequência da modernidade: levar a lado nenhum. E essa é uma condição inadmissível.

O próprio arsenal argumentativo do neo-liberalismo que está por todo o lado, que respira pelos nossos próprios poros, aproveita-se da ressaca do impossibilismo da modernidade. Os românticos anti-românticos escutam a gargalhada e crêem-se imunes a ela. É o primeiro passo para a auto-complacência. Eco sinistro da dita gargalhada. A complacência para com o estado das coisas tem uma característica muito cómica: anda sempre um passo atrás do aprofundamento do deserto. Quando este dá um passo, a complacência avança um passo mais. Como já sabemos a complacência não é nirvana, não é beatitude, não é inócua, é criadora, é transdisciplinar, transgender, é fracturante e transversal, não tem preconceitos, é pós-moderna: gera a impunidade dos cães de guarda do capital.

O escravo sabia que a sua condição de ser supérfluo era uma injustiça inevitável – o cidadão do século XXI faz por crer que a sua condição supérflua é uma conquista inevitável. O primeiro, destruiu essa verdade. O segundo, não vê essa mentira.

Os Vadios,

21 de Março de 2010, Porto